quarta-feira, 14 de novembro de 2007

Superstição e religião verdadeira


"Quanto, a saber, o que é Deus, isso não depende da fé"


Se os homens pudessem regular todos os seus assuntos segundo uma opinião determinada, ou ainda se a fortuna lhes fosse sempre favorável, eles não seriam jamais possuídos por nenhuma superstição; mas eles são muitas vezes reduzidos a uma tal extremidade e por isso eles não podem se fixar a uma opinião, e que, a maior parte do tempo, por causa dos bens incertos da fortuna, que eles desejam sem moderação, eles flutuam miseravelmente entre a esperança e o temor; por essa razão eles têm a alma tão inclinada para acreditar em coisas absurdas; quando ela está na dúvida, o mínimo impulso a faz inclinar-se facilmente de um lado ou do outro, e isso acontece bem mais facilmente ainda quando ela se encontra em suspenso pelo temor e pela esperança que a agitam - enquanto que em outros momentos ela está inchada de orgulho e de gabação.
Isto, eu penso que ninguém o ignora, se bem que a maioria, pelo que eu creio, se ignoram eles mesmos. Ninguém, com efeito, viveu entre os homens sem perceber que a maioria, tão grande quanto seja a inexperiência deles, possui abundantemente muita sabedoria nos dias de prosperidade que seria lhes injuriar o fato de lhes dar uma opinião; na adversidade, ao contrário, eles não sabem aonde ir, eles solicitam a opinião de cada um, e eles não acham nenhum muito estúpido, absurdo ou vão para ser seguido. Enfim, os motivos mais fúteis lhes dão esperanças ou os fazem recair no temor. Pois se, quando eles são possuídos pelo temor, eles vêm acontecer alguma coisa que lhes lembra um bem ou um mal passado, eles pensam encontrar nela o anúncio de um resultado feliz ou infeliz, e por essa razão, se bem que decepcionados cem vezes, eles a chamam presságio favorável ou funesto. Se, além disso, eles vêm com grande espanto alguma coisa insólita, eles acreditam que se trata de um prodígio que manifesta a cólera dos deuses ou da divindade suprema; não acalmá-las com sacrifícios e orações parece uma impiedade aos homens possuídos pela superstição e afastados da religião. Eles forjam dessa maneira infinitas invenções e eles interpretam a natureza de maneira surpreendente como se ela toda inteira delirasse com eles.

- Traité Théologico-Politique - Spinoza - Préface, Trad. J.Lagrée et P.-F. Moreau, PUF, 1999 -


A fé universal só compreende então os dogmas que a obediência a Deus supõe absolutamente, e de qual a ignorância torna a obediência absolutamente impossível. Quanto aos outros dogmas, cada um, se conhecendo melhor que qualquer outro, deve pensar deles o que lhe parecerá o melhor para fortifica-lo no amor da justiça. Por esse princípio, na minha opinião, não é deixado um lugar para as controvérsias na Igreja. Eu não temerei, mas agora enumerar os dogmas da fé universal, quer dizer os pontos fundamentais que são a intenção da Escritura universal. Todos eles devem se dirigir nessa direção: existe um ser supremo que ama a justiça e a caridade, para quem todos devem obedecer para serem salvos, e que todos devem adorar através o culto da justiça e da caridade para com o próximo. [....]
Quanto, a saber, o que é Deus, quer dizer o modelo de vida verdadeira - se ele é fogo, espírito, luz, pensamento, etc. - isto não depende da fé; e menos ainda o fato de saber porquê ele é um modelo de vida verdadeira: será porquê ele tem uma alma justa e misericordiosa, ou porquê todas as coisas são e agem por ele, e que é também através ele que nós compreendemos e vemos o que é verdadeiramente justo e bom? Pouco importa o que cada um de nós terá decidido. Também não é importante para a fé de acreditar que Deus está presente em tudo quanto a sua essência ou quanto a sua potência, que ele dirige as coisas pela liberdade ou pela necessidade de sua natureza, que ele prescreve as leis como um príncipe ou as ensina como verdades eternas. [....] O quanto essa doutrina é salutar, o quanto ela é necessária no Estado para que os homens vivam na paz e na concórdia, quantas causas de perturbação políticas e de crimes, e de qual gravidade, ela suprime radicalmente, eu deixo a cada um a responsabilidade de julgar.

-- Idem, XIV, 9 - 12.


Superstição e religião verdadeira

"Eu sempre me lembro com surpresa que os homens que se gabam de professar a religião cristã, quer dizer o amor, a alegria, a paz, [....] rivalizam de iniqüidade e exercem cada dia o ódio mais violento uns contra os outros", declara Spinoza no começo do livro Traité théologico-politique (1670). Como a religião do amor pode se transformar em instrumento de ódio? O Traité responde a essa questão distinguindo religião e superstição.


Credulidade e arrogância

No prefácio, Spinoza mostra que a superstição tem duas fases: a credulidade (quando tudo está errado, nós acreditamos em absurdos, em qualquer pessoa) e a arrogância (quando a fortuna é positiva, nós acreditamos saber tudo, nós recusamos todos os conselhos, toda fé). Todos os homens são inclinados à superstição, mesmo se a maioria acredita que é o defeito dos outros. Apenas fará exceção àquele que sabe que ele é como todo mundo, e compreendendo o mecanismo psicológico que produz a superstição, saberá libertar-se dela. Mas nós não confundiremos a religião e a superstição. Mesmo se a religião revelada é baseada em uma representação errada de Deus, seu ensinamento moral se aproxima do ensinamento da razão. Assim a religião pode ensinar o preconceito finalista: esse preconceito só se transforma em superstição, nós podemos ler no apêndice da primeira parte do livro Ethique, a partir do momento em que cada um pretende ser o intérprete privilegiado de Deus. Esta é a razão das lutas ferozes, cada um estabelecendo sua imaginação em um conhecimento sobrenatural; Esta também é a causa do ódio da razão, porque ela é universal e exclui o milagre.


Justiça e caridade

Todavia, para difundir a religião, os profetas e os apóstolos tiveram que adaptá-la aos preconceitos do tempo deles: apresentar Deus como um criador e um juiz, suas revelações como leis morais, instituir enfim ritos e crenças que podem se contradizer, segundo as épocas e o imaginário de cada profeta. A religião contém dessa forma necessariamente os fermentos da superstição. Dessas crenças contingentes, a religião faz dogmas indispensáveis á salvação, e a partir disso ela pretende controlar os espíritos. Mas a verdadeira fé que se exprime por uma pura prática da justiça e da caridade não saberia contradizer a razão (segundo texto acima). O problema então não é de distinguir o verdadeiro do falso nos ensinamentos da religião, mas de distinguir a verdadeira religião da falsa, aquela que, com o pretexto de religião, espalha, no lugar da alegria e do amor, o temor e o ódio.


Função da exegese bíblica

A solução não é de institucionalizar a filosofia no lugar da religião, pois nada seria mais ridículo do que uma filosofia edificada em dogma. E as maiorias dos homens precisam de um suporte imaginário (por exemplo, acreditar que Deus é submetido á piedade ou á cólera) para obedecer de boa vontade aos mandamentos divinos. O filósofo pode, todavia intervir para tirar das crenças contingentes o conteúdo essencial, os dogmas da religião universal. Para preservar o caráter revelado do texto sagrado e ao mesmo tempo bloquear a usurpação supersticiosa, Spinoza propõe um método de interpretação da Escritura que prefigure a exegese histórico-crítica que nasceu no século XIX. O texto é estudado dessa forma independentemente de toda autoridade exterior. O resultado desse estudo é que acreditar em Deus, não é nada mais do que praticar a justiça e a caridade; para o resto (as questões especulativas: natureza de Deus, da salvação, etc), o Estado deve garantir aos homens a liberdade de pensar e de ensinar o que eles querem.

- A.S.

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